Modernismo, transatlânticos e classe: reflexões sobre progresso e o status quo

O início do século XX presenciou o nascimento da arquitetura modernista. Trouxe consigo um movimento arquitetônico principal que gerou movimentos derivados. Uma figura frequentemente vista como indivíduo definidor desse movimento é Le Corbusier, cujo tratado de 1923 Por uma Arquitetura influenciou seus contemporâneos — um manifesto que inclui a famosa frase "uma casa é uma máquina de morar" onde a boa arquitetura teria que ser intrinsecamente ligada a sua função e às exigências da indústria.

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Na busca por exemplos de design em que função e forma tenham uma relação harmoniosa, o transporte tornou-se uma fonte fundamental de inspiração para os arquitetos modernistas. Carros tornaram-se uma obsessão para Le Corbusier, que via os automóveis como um símbolo da modernidade. Apesar disso, outra forma de transporte teve um impacto ainda maior sobre os ideais modernistas: os transatlânticos. Navios de passageiros de longas distâncias passaram a ser modelos de design para a chamada "arquitetura da nova era".

O motivo disso é muito simples. Na virada do século XX, os transatlânticos representavam conquistas históricas da engenharia. Essas grandes embarcações venceram o difícil desafio de fazer longas viagens marítimas e, ao mesmo tempo, dar conforto a seus passageiros. Quanto mais caras eram essas viagens, mais sofisticados eram os projetos. Despertou-se, assim, o interesse de arquitetos que buscavam reproduzir essas formas aerodinâmicas, guarda-corpos de tubos metálicos e interiores sofisticados em projetos em terra firme.

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The S.S Normandie - grande influencia sobre Modernismo . Imagem © Wikimedia User Altair sob licença (CC BY-SA 2.0)
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Villa Savoye. Imagem © Flickr User Steve Silverman sob licença (CC BY-SA 2.0).

A adoção da “estética do transatlântico” em certas obras modernistas torna-se ainda mais interessante quando se entende o contexto social delas, levando-nos a uma discussão complicada. O transatlântico, com seu design de interiores extravagante e comumente relacionado às viagens dos ricos, pode transferir para a arquitetura símbolos que intensifiquem ainda mais a elitização de um edifício. O primeiro andar da Villa Savoye, projeto de Le Corbusier em Paris, foi deliberadamente criado para imitar a sensação e a aparência do andar superior de um transatlântico. O corrimão tubular branco que envolve a escada curva aumenta ainda mais esse efeito. Villa Savoye, como muitas das primeiras obras de Le Corbusier, foi um projeto para um cliente rico.

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Villa Savoye. Imagem © Flickr User Steve Silverman sob licença (CC BY-SA 2.0).
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Villa Savoye. Imagem © Flickr User Steve Silverman sob licença (CC BY-SA 2.0).

O transatlântico como símbolo de opulência foi empregado por Le Corbusier no modo como ele organizava os espaços e extinguia interiores espalhafatosos, entretanto, em última análise, esses espaços não deixavam de funcionara como símbolo de riqueza na “era da máquina”.

Outro arquiteto francês Jean Prouvé também se inspirou na linguagem náutica para desenvolver seu próprio segmento dentro do modernismo. Suas Maisons Tropicales pré-fabricadas da década de 1950 eram protótipos feitos de chapas de aço dobradas e alumínio. Nesse projeto, a inspiração em transatlânticos teve uma presença, mesmo que discreta, aparecendo apenas nas aberturas circulares de paredes externas – uma referência às vigias dos navios. Embora a natureza do projeto represente uma estrutura improvisada, o símbolo de luxo ainda estava presente, pois as casas foram projetadas para funcionários franceses nas colônias francesas da África Ocidental. Este é um exemplo muito sólido das limitações de algumas linhas de pensamentos modernistas.

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Maison Tropicale - Brazzaville . Imagem © Flickr User Steve Cadman sob licença (CC BY-SA 2.0) .

Uma nova era de mecanização, exaustivamente promovida como uma ferramenta que reduziria as mazelas sociais e proveria uma sociedade mais igualitária, resultou em Jean Prouvé fazendo a simples reprodução, porém com uma nova roupagem, de um emblema associado à riqueza: as vigias dos transatlânticos e, dessa vez, não era para um cliente revolucionário, era para as retrógradas autoridades coloniais francesas. Os transatlânticos daquela época tinham um sistema hierárquico, onde as distinções entre as classes bastante evidentes no design e no espaço exclusivos dos passageiros ricos em contrastes aos das classes inferiores. As Maisons Tropicales de Prouvé se esforçavam para harmonizar com a cultura dos africanos originários através dos métodos modernos de construção. A pesar disso, sua busca formal em se aproximar das casas europeias era evidente, distinguindo-se da arquitetura vernacular dos africanos nas colônias da África Ocidental da França.

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Maison Tropicale - Reconstrução por Archer Humphrey Architects. Imagem © Archer Humphryes Architects

Existe um exemplo que buscou e conseguiu concretizar o apelo modernista do transatlântico em uma estrutura democrática. O De La Warr Pavilion, na costa sul da Inglaterra, é uma clara homenagem à grande era dos transatlânticos em termos estilísticos. Este pavilhão foi projetado por Enrich Mendelsohn, que fugiu da Alemanha de Hitler, e pelo arquiteto russo Serge Chermayeff.

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De La Warr Pavilion. Imagem © Flickr User vince2012 sob licença (CC BY-NC-ND 2.0)
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De La Warr Pavilion. Imagem © Flickr User Antony J Shepherd sob licença (CC BY-NC-ND 2.0)

Aço e concreto são os componentes do esqueleto do pavilhão, com grandes janelas de vidro e varandas em balanço, como nas grandes embarcações marítimas. Originalmente, no entanto, o edifício não foi concebido como um clube para a elite, mas sim como o “Palácio do Povo”. O prefeito – um defensor do pensamento socialista – comunicava que o edifício funcionaria como um empreendimento social e democrático, um centro cultural de fácil acesso para o público em geral. O local prosperou como um local de entretenimento de primeira categoria, lançando as bases para o Southbank Centre em Londres.

Enquanto os arquitetos modernistas procuravam escapar dos limites da arquitetura da antiguidade, o transatlântico era uma ilustração sensata do progresso, da modernidade e do poder da tecnologia. Com esta imagem, alguns arquitetos simplesmente usaram o transatlântico como um símbolo puramente estilístico, uma continuação do transatlântico como um marcador de riqueza. Em alguns edifícios modernistas, no entanto, o transatlântico foi uma escolha estilística apenas no sentido superficial – onde as hierarquias complicadas do transatlântico de passageiros foram eliminadas em favor de uma estrutura mais igualitária.

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Sobre este autor
Cita: Maganga, Matthew. "Modernismo, transatlânticos e classe: reflexões sobre progresso e o status quo" [Form, Function - Freedom? Modernism, Ocean Liners, and Class] 02 Abr 2022. ArchDaily Brasil. (Trad. Gagliardi, Walter) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/978115/modernismo-transatlanticos-e-classe-reflexoes-sobre-progresso-e-o-status-quo> ISSN 0719-8906

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